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Um breve histórico do autismo infantil |Colunista

Um breve histórico do autismo infantil |Colunista

Apresentar um panorama histórico para o autismo requer uma escolha dos fatos e acontecimentos a serem apresentados diante de um transtorno que ao longo do tempo foi marcado por diversos atravessamentos teóricos e socioculturais.

Os autores são unânimes em demarcar o psiquiatra infantil Leo Kanner como pioneiro no reconhecimento do autismo em 1943, publicando um artigo denominado Autistic Disturbances of Affective Contact (Distúrbio Autista do Contato Afetivo) que demarca como principal característica a incapacidade, desde a primeira infância, de as crianças se relacionarem com outras pessoas.

Além da preferência pela solidão, era marcante a necessidade de mesmice e monotonia. Características secundárias envolviam movimentos estereotipados e alterações da fala, da linguagem e da cognição.

Apesar da descrição feita, o autismo prosseguia desconhecido na literatura médica americana como um diagnóstico nas décadas de 1940 e 1950. Não havia consenso sobre quais critérios seriam os mais apropriados, muito menos sobre qual a melhor nomenclatura. Foi somente nos anos 60 que o autismo se tornou popular na literatura médica. Foi nessa época, também, que houve uma tendência geral na psiquiatria de culpabilização dos pais no autismo dos filhos – período que ficou marcado na história como a era da “mãe geladeira”.

Os anos 60 – o surgimento das “mães geladeiras”

Leo Kanner, em seu artigo de 1943, considerava o autismo como um distúrbio de natureza congênita. Não se sabe ao certo os motivos que o tenham levado a considerar a rejeição parental como causa do autismo em um artigo de 1949, descrevendo os pais como “indiferentes, frios e obsessivos”.

Kanner não foi o único responsável pelo movimento de culpabilização das mães. Bruno Bettelheim, que não tinha formação na área psicológica/médica, chegou a ser considerado um dos maiores psicólogos infantis do mundo. Ao fugir da Alemanha nazista em 1939, Bettelheim se estabeleceu nos Estados Unidos e ficou a frente da direção da Escola Ortogênica Sonia Shankman, responsável pelo tratamento de crianças com transtornos mentais.

Em 1955, Bettelheim se propôs ao cuidado de crianças autistas na Escola Ortogênica, fato que rendeu a ele experiência para escrever um livro intitulado A fortaleza vazia, em 1967. Aclamado pela crítica e população geral, o livro de Bettelheim conta com insights a respeito da sua experiência pessoal na Segunda Guerra Mundial.

A partir de uma analogia com os comportamentos observados nos prisioneiros dos campos de concentração nazistas, como por exemplo, o olhar esquivo, a paralisia e a memorização de listas e datas, o autor coloca que assim como o nazismo infligira esses comportamentos nos prisioneiros, as mães faziam o mesmo com seus filhos. “A analogia era completa: as mães como carcereiras de campo de concentração. As mães como nazistas.”
(DONVAN; ZUCKER, 2017, p. 99).

O contraponto a teoria da “mãe geladeira”

As ideias apresentadas por Kanner e Bettelheim sustentaram uma das principais teorias do autismo na década de 1960: seus posicionamentos o colocaram como defensores da etiologia afetiva ou teoria psicogênica.

O contraponto para ambos autores seria apresentado por Bernard Rimland, psicólogo experimental que dedicou a carreira a pôr fim a teoria da mãe geladeira, constatando que esta não apresentava respaldo científico e estatístico nos trabalhos até então existentes. Para isso, Rimland reuniu, em 1958, 230 casos descritos por diversos pesquisadores. Para o autor, a culpabilização das mães não se sustentava por quatro motivos:

A maioria das mães de autistas tinham outros filhos que não apresentavam o autismo; se o autismo tivesse origem psicogênica, deveria desaparecer com um tratamento psicoterapêutico, processo que só resultou em fracasso nos resultados a teoria psicogênica defendia a hipótese de que houvesse ocorrido algum trauma na primeira infância, mas não especificava um padrão de incidentes, e muito menos relatava algum caso em que o
autismo tivesse início após um suposto trauma. Por último, pelo menos 23 pais do seu banco de dados eram descritos como afetuosos e alegres, contradizendo a ideia de “personalidade fria”.

As constatações feitas por Rimland o levaram a questionar os cuidados parentais como causadores do autismo e apostar cada vez mais em sua natureza biológica. Rimland chegou a trocar diversas correspondências com Leo Kanner, que, como forma de se retratar com o público, ofereceu total apoio as ideias defendidas pelo psicólogo. Dessa forma, Rimland tornou-se representante principal da escola de etiologia orgânica do autismo.

A etiologia orgânica do autismo não passou despercebida. Observou-se um movimento de insatisfação com a falta de evidências que demonstrassem a eficácia da abordagem psicanalítica defendida e utilizada por Bettelheim para o autismo. Ole Ivar Loovas foi um dos pioneiros na adoção de um novo paradigma teórico para o tratamento do autismo: o behaviorismo.

O surgimento do Método ABA

Loovas conduziu uma série de experimentos no Instituto de Neuropsiquiatria da Universidade da Califórnia, com crianças institucionalizadas ou não. Seus estudos tinham por objeto retardar a frequência de comportamentos fisicamente nocivos em crianças que eram vistas como autodestrutivas, e que exerciam autolesão e agitação intensa do corpo.

A pesquisa conduzida por ele ficou conhecida na história da psicologia como a controversa terapia de aversão, e consistia em parear a ocorrência de comportamentos-problema com estímulos aversivos. Com o passar do tempo, Loovas substituiria gradativamente o uso de punições por reforçadores, e suas intervenções voltaram-se para a modelagem de repertórios comportamentais mais adaptativos.

As sessões estruturadas, com tempo e ordem determinada, decomposição de tarefas complexas em partes mais simples e o uso de reforçadores foram as condições necessárias para a criação da Applied Behavior Analysis (Análise Aplicada do Comportamento), ou Método ABA.

Enquanto nos Estados Unidos as pesquisas se concentravam na busca de soluções para o autismo, propondo uma série de tratamentos, como os acima descritos, na Grã-Bretanha os pesquisadores estavam interessados na compreensão dos contornos da mente autista.

Definindo o “espectro”

As maiores contribuições para o autismo advindas das pesquisas inglesas ficariam a cargo de Lorna Wing e a sua proposta para o conceito do que hoje se entende por espectro. A proposta da autora foi entender o autismo dentro de um continuum. Segundo ela, não é possível estabelecer limites fixos entre o autismo grave e o leve.

Wing percebeu que os pesquisadores com frequência tinham dificuldades em estimar o número de pessoas com autismo em dada população. Isso se dava, principalmente, por conta daqueles que apresentavam características obviamente autistas, mas que não eram o bastante para que recebessem o diagnóstico.

As definições eram estreitas e excludentes com aqueles que não se ajustavam às categorias, deixando-os de fora dos tratamentos e acessos a serviços fundamentais. Wing propôs, então, a sua tríade da incapacidade como definidora do transtorno: incapacidade no conjunto usual de habilidades sociais, na linguagem recíproca, e na imaginação social.

Conforme colocado pela autora, o que fornece sentido a sua proposta é que os elementos da sua tríade se compõem com variabilidade e flexibilidade. Ou seja, as características do autismo podiam aparecer em muitas combinações e em infinitos matizes de intensidade, até o limite da normalidade.

Nessa altura, o autismo já estava incluído na terceira edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-III), em 1980, como autismo infantil, sendo considerado um transtorno invasivo do desenvolvimento. A proposta de Wing influenciou na revisão do DSM em 1987 (DSM-III-R). Duas categorias foram inclusas: transtorno autista e transtorno global do desenvolvimento sem outra especificação, rótulo mais abrangente para incluir aqueles “quase” fora do diagnóstico.

Além da proposição do espectro autista, Wing também ficaria conhecida por apresentar o conceito diagnóstico da Síndrome de Asperger para o restante do mundo. A tríade de incapacidades englobava as descrições de Kanner e as feitas por Asperger entre 1938 e 1944, traduzidas para o inglês pela autora nos anos 80, fato que rendeu a síndrome de Asperger, na década de 1990, uma categoria diagnóstica própria no DSM-IV entre os transtornos globais do desenvolvimento.

O autismo na atualidade

Ao término na década de 1990 e início da década de 2000, o autismo ganhou certa popularidade por duas questões: suposta epidemia e o medo à vacina. Nesse momento, o número de crianças com autismo aumentou drasticamente. Dados de um relatório demográfico de 1999 que viria a ser conhecido como “estudo da Califórnia” demonstravam um aumento de 273% no número de casos de pessoas autistas que se beneficiavam dos serviços públicos de assistência.

As mudanças na prevalência do autismo no decorrer do tempo são reflexos das alterações ocorridas em sua definição e nas edições do DSM. Para os cientistas em geral, era evidente que as mudanças nos critérios foram as responsáveis pelo aumento na incidência do autismo. Para o público leigo, essas explicações não eram acessíveis.

Em 1998, Andrew Wakefield, gastroenterologista, conduziu um estudo no Hospital Royal Free com 12 crianças que, segundo ele, haviam apresentado comportamentos autistas e problemas intestinais logo após ministrada a vacina tríplice para sarampo, rubéola e caxumba. A divulgação dos supostos efeitos da vacina que estariam causando uma epidemia de autismo logo caiu no discurso popular.

Para o autor, a inflamação intestinal oriunda do vírus do sarampo (presente em pequenas doses na vacina) expunha a criança ao timerosal, utilizado na composição das vacinas para fins de esterilização. A solução de Timerosal contém mercúrio, e, de acordo com as conclusões de Wakefield, era a toxina responsável por causar danos neurológicos que levariam as crianças a apresentarem o autismo.

Apesar de não haver evidências científicas, o discurso de Wakefield e a repercussão midiática instigou o debate entre os cientistas e famílias. Como resultado, movimentos antivacinação surgiram em diversos países. A polêmica perduraria por anos até que, em 2004, foi descoberto que Wakefield possuía interesses em promover uma vacina antissarampo que supostamente seria uma alternativa segura, e que estava patenteada em seu nome.

Atualmente, há uma tensão teórica entre aqueles que enxergam o autismo como um espectro (os agrupadores, ou lumpers) e os que defendem que Kanner e Asperger abordaram síndromes diferentes (os separadores, ou splitters).

Atualmente, a ideia agrupadora, que alega que as características centrais do autismo estão presentes em ambos, é a mais aceita. Com a publicação do DSM-5, o autismo passou a ser compreendido como “Transtorno do Espectro Autista”. Como retratado nesse recorte histórico, o autismo foi perpassado por uma série de questões no decorrer do tempo, que de alguma forma refletem a impossibilidade de se abordar um tema tão vasto a partir de uma única concepção.

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Referências

DONVAN, John; ZUCKER, Caren. Outra Sintonia: a história do autismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 700 p.

KANNER, Leo. Autistic Disturbances of Affective Contact. Nervous Child, n. 2, 1943.

WHITMAN, Thomas. O Desenvolvimento do Autismo: Social, Cognitivo, Linguístico, Sensório-motor e Perspectivas Biológicas, São Paulo: M. Books do Brasil Editora Ltda, 2015.

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